Depois das festas
Esse período é muito conturbado para todo
mundo, mas para os aspies é muito pior. A quebra de rotina e o cansaço tomam conta
da gente, é muita informação para o nosso cérebro processar e muitas coisas que
não queremos fazer e, às vezes, fazemos porque, mesmo que não pareça, estamos
sempre tentando nos adaptar. E se optamos por não faze-las, como aconteceu comigo esse
ano, ficamos com uma sensação ruim.
A pior coisa para um aspie é ouvir que ele não muda porque não quer, as pessoas não tem a menor noção do esforço que fazemos.
Eu acredito que o autismo nos apresenta duas
portas e depende da qual você escolhe entrar é aquela que irá fazer você ser
verbal ou não-verbal, trancar-se dentro do seu próprio mundo ou conviver com
todas as outras pessoas. Eu escolhi ser verbal e me esforçar para estar
presente, às vezes, acho que escolhi o caminho mais difícil. É difícil porque
você está apto para fazer todas as coisas que a vida oferece, mas você não faz
ideia de como fazer isso. Você não consegue entender essa forma que as pessoas se
comunicam, você pensa por padrões e junta tudo o que aprendeu durante a vida,
mas nunca é o suficiente, sempre tem uma surpresa e nós não gostamos de surpresas,
não é mesmo?
Esse ano eu prometi me cuidar bem e fazer o
melhor tratamento. Até dez anos atrás eu era complementarmente alheia ao mundo
das outras pessoas, eu trabalhava muito, não existia finais de semana, ano novo
ou natal, eu fui chefe do setor de TI aos 18 anos e eu amava o que fazia, tinha
talento, mas eu não tinha ideia de como eu sabia fazer aquelas coisas sem ter
feito faculdade ou curso. Trabalhava no
setor publico e não me deixava corromper. Sempre me orgulhei desse meu comportamento,
mas só agora eu entendi que não vejo valor em dinheiro, que eu não sei o quanto
cobrar por um trabalho meu, porque eu faço com muita dedicação. Então, eu
jamais iria me vender, e também eu tinha uma consciência boa sobre as pessoas que não
conseguiam ganhar um salário justo, porque lá na outra ponta havia alguém se
corrompendo e eu, definitivamente não queria fazer parte disso.
Naquela época eu era muito mais feliz, as
pessoas com quem eu convivia eram tão esquisitos quanto eu, eles entendiam de
máquinas e de jogos de computador. Quando passei a me envolver com pessoas
diferentes, tudo mudou e eu me senti perdida. A minha inteligência e a minha
força de vontade decaíram muito daquela época para cá, hoje eu não teria mais a
capacidade de arranjar as soluções que consegui naquela época (sem google). Eu passei
de entender de sistemas e computadores para querer entender de sentimentos e
emoções, logicamente me sinto frustrada, pois não chego nem perto de ser boa
nisso.
Eu sinto uma enorme falta daquela Grazi, ela
tinha a capacidade de mudar tudo, de colocar tudo nos eixos sendo ela mesma,
infantil, arrogante e sinceramente nunca naquela época alguém se importou com
isso. Não importava para ninguém como eu era, desde que fizesse o trabalho.
Quando eu sai do setor, eu me senti muito mal, entrei em uma depressão profunda
e isso é muito comum nos aspies quando perdem um emprego de muitos anos.
Na saída eu encontrei as drogas e encontrei um
mundo que eu nunca tinha visto, nunca na minha vida eu iria imaginar que as
pessoas eram legais, e que elas não se importavam com o que eu dizia e como era
a minha aparência física. Eu não tinha uma aparência boa, porque eu pesava
110kg, mas eu me senti acolhida de verdade e fiz amigos. E eles falavam
muito e eu também falava muito sobre o que quisesse falar e se eu quisesse ficar
só pensando também podia. Eu não precisava tentar decifrar a fisionomia deles,
não precisava olhar nos olhos para dizer que estava sendo sincera.
Mas eu me cansei da movimentação toda e das
pessoas, eu me sentia mal em estar em grupinhos, então eu resolvi me isolar e fazer tudo sozinha. Eu tinha 27 anos e achei que seria uma idade boa para morrer
como os ídolos do rock. Logicamente não morri, e levou um ano até eu
descobrir que esse era um péssimo caminho e muito caro também. Assisti ao filme
28 dias, durante 28 dias, fiz uma correntinha de papel de chicletes semelhante
ao da Gwen, a personagem principal do filme, mas a minha era muito maior e me livrei do uso daquelas substâncias.
Resolvi me inscrever na faculdade, eu tinha
feito Economia aos 17 anos e havia desistido porque me sentia ansiosa com tanta gente nova. Então,
dessa vez eu comecei Desenvolvimento de Sistemas para a Internet, desisti
depois de dois anos e meio, eu sofria, pois como a minha aparência ainda não era das
melhores, eu continuava com os 110kg, só usava preto, não costumava sorrir e nem conversar, as pessoas demonstravam bastante
preconceito. Então, praticamente todos os dias, eu não via a hora de chegar em
casa deitar na minha cama e chorar muito. Estudei durante 3 anos tudo sobre a
cirurgia bariátrica, desisti da faculdade e o melhor médico do estado de Santa Catarina,
Dr. Celso Empinotti, fez a minha cirurgia.
Mas se eu pudesse voltar a ser a pessoa que eu
era, lá no começo, eu a escolheria com toda certeza. Não queria voltar a ser gorda e nem
tomar o tanto de remédios que eu tomei para emagrecer, nem as tentativas de
bulimia e anorexia, porque realmente isso era algo muito ruim que eu nem
gosto de falar. Mas ter a minha personalidade mais fechada, o meu mundo, não
querer entender tudo isso que não veio para mim de fabrica, eram as coisas que me protegiam e me faziam ser uma pessoa mais feliz.
Sei também que isso não é mais possível, por causa
da nossa plasticidade cerebral. Então, preciso pensar muito sobre tudo isso e
arranjar uma maneira de viver assim, mas pelo menos sendo um pouco feliz.
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