Diferenças Invisíveis

by - março 06, 2018

 


Minha mãe conta eu comecei a falar bem com 2 anos e mantinha conversa com adultos, comecei a ler e escrever com 5 anos, mas só fui demonstrar que sabia quando me interessei por um livro, não era uma boa aluna mas passava de ano quando devia passar, era valente e destemida, daquelas que não levam desaforo para casa, meu quarto era muito organizado e as minhas bonecas eram conservadas como saiam da caixa e enfileiradas por ordem de tamanho em cima do guarda-roupa, só consegui me desfazer delas aos 17 anos.

A minha versão dos fatos é um pouco diferente da versão da minha mãe. Eu me sentia diferente das outras crianças, em algumas coisas eu tinha mais maturidade e em outras elas eram muito espertas e eu gostava de ouvi-las falar coisas que eu não tinha percebido. No jardim de infância eu era apaixonada por um balanço que tinha na escola e não voltava do recreio para poder brincar nele, era doida por livros e revistas sempre andava para cima e para baixo com muitos papeis, tinha um senso de justiça muito forte e defendia o que era certo. Odiava educação física porque não conseguia ter um bom contato com a bola e nem correr bem.

Eu aprendi a não reclamar muito e esconder as coisas que me faziam sentir mal. Eu me sentia burra e eu rezava todos os dias para que Deus me fizesse ficar inteligente. Imitava as pessoas que eu gostava, em todos as minhas fotos eu posso descrever o que estava sentindo e quem eu estava imitando, eu imitava tão bem o tom de voz, a forma que a pessoa falava e as palavras que usava que algumas pessoas me falavam: "lembrei de tal pessoa ou então você parece tal pessoa". O ruim de ser assim é que você não sabe direito mais quem você é e nem qual o seu gosto, às vezes, fico me perguntando se eu gosto mesmo de certas coisas ou não.

Eu não tinha amigos. Amigos para valer, sabe? E quando eu achava que tinha, por volta dos 12 anos, eu descobri que não tinha, as pessoas se aproveitavam para rir de mim ou me colocavam em encrencas. Eu sempre arquei com as consequências porque sempre fui muito certa a respeito de assumir minhas responsabilidades, mesmo que fosse por inocência. Até hoje sou assim, eu nunca minto, mas cuido muito para não falar alguma coisa que coloque uma pessoa contra outra.

Eu ainda não tenho amigos, porque todas as pessoas já tem seus próprios amigos, que são pessoas que combinam com elas. E eu não combino com ninguém, acho que porque eu demoro muito para tomar decisões e porque não tenho um gosto parecido com os gostos das mulheres da minha idade.

Quando eu não gosto de algo, por exemplo, uma comida e estou próxima de alguém que eu conheço costumo falar, gosto de comer quase sempre a mesma coisa. Não gosto de mudanças, quando as pessoas falam algo e depois mudam, quando combinam alguma coisa e depois esquecem, não gosto que mintam para mim porque fica muito difícil de eu confiar novamente.

Tudo o que eu escrevi até agora parecem ser coisas normais, coisas que qualquer pessoa pode ser, fazer e pensar. O que há de autista nisso tudo?

É uma diferença invisível, sobre conexões cerebrais e por isso difícil de ser reconhecida.  Alinhar minhas bonecas era gostoso ao deitar na cama e olhar para elas depois, assim como esfregar certos tecidos entre meus dedos, a sensação é de calma e quando eu gosto de algo eu penso que posso fazer isso para sempre, que não preciso de mais nada para viver.

Eu era valente e destemida quando precisava defender alguma injustiça, mas muito tímida para socializar com as pessoas. A minha autoestima era muito baixa, eu era má aluna e não me interessava pelas coisas que a professora explicava, eu me dava muito mal, mas de repente eu aparecia sabendo ler um livro enquanto as outras crianças ainda estavam aprendendo a ler, acho que isso fazia com que eles me empurrassem para o próximo ano.

Era independente em muitas situações, eu sempre dava um jeito de me virar sozinha e até hoje é assim, acostumei a ser assim e aprendi que as pessoas mudam tanto que eu não sei em quem confiar. Quando eu tinha 2 anos eu quebrei o braço, somente 8 dias depois a minha família descobriu. Eu não reclamava e fazia as coisas com o braço esquerdo, todos achavam que eu ia ser canhota.

Mudanças são complicadas e cada vez que falo isso para alguém eu tenho que ouvir que o mundo muda o tempo todo e que mudanças fazem parte. Agora, imagine você dormir na sua cama e no seu quarto e acordar em outro lugar que você não faz ideia onde está e nem como foi parar lá. É assim que eu me sinto com relação a mudanças, o meu cérebro transmite uma sensação de que está tudo errado, tudo fora do lugar e que nada mais será como antes. Eu sei que as coisas mudam, que as pessoas falam uma coisa e depois podem voltar atrás, mas o meu cérebro não entende e a segurança fica abalada.

Comecei a perceber que as mudanças eram tão difíceis para mim nos últimos anos, porque antes eu entrava em crises de choro, de ansiedade e depressão e não sabia exatamente o que estava acontecendo comigo. Em 2016 eu participei de um grupo espiritual e o meu hiperfoco estava voltado para essa descoberta, foi muito bom o aprendizado e descobrir minhas próprias conexões, mas mudaram a data do encontro e para mim bastou isso para sentir que tudo estava errado e não era mais a mesma coisa. Em 2017 fui com uma amiga passar cinco dias em uma pousada, uma noite ela me disse que preferia estar com outra pessoa mais esperta e ouvir isso doeu, porque eu estava me esforçando muito para estar lá e eu realmente gostava muito dela, eu entrei em colapso e de repente ela quis vir embora, entrei em crise durante alguns dias em casa.

Então as amizades são difíceis, porque as pessoas nos rotulam, nos falam que não somos espertos embora nos achem inteligentes. Eu percebo o quanto me querem para fazer as coisas referente ao trabalho, mas não para algum tipo de diversão como vejo fazerem com seus amigos.

É muito difícil se sentir incluída quando se está vivendo sob essa condição, porque ao mesmo tempo que tenho dificuldade em entender fisionomia, eu percebo quando não estão sendo sinceros comigo, mas a dificuldade de entender a intenção dos outros me confunde e então não sei mais se estou certa.

Essas diferenças são invisíveis. Não sou robótica, não tenho muitos estereótipos, me comunico bem, não há nada de errado aparentemente comigo, mas o meu cérebro funciona diferente. Ninguém pede para uma pessoa em uma cadeira de rodas atravessar uma rua correndo, porque sua deficiência é óbvia. No entanto se alguém me ouve dizer alguma coisa sem sentido ou expor a minha opinião eles falam: “Nossa, como você é arrogante!”.

O que falta no mundo é respeito. É entender que para algumas pessoas um toque é como receber um choque, que muito barulho e informação vão acumulando em suas mentes e essas pessoas não conseguem mais ter concentração, que mudanças repentinas as deixam desorientadas e sentindo-se inseguras, que certos alimentos causam enjoo e um aspie é muito sincero para disfarçar.

O universo autista é amplo e ao mesmo tempo fascinante. Lutamos para viver em um mundo feito para neurotípicos, para entender e respeitar as outras pessoas, mas seria muito bom ter um tratamento mais compreensivo da parte dos outros.

Eu ando muito chateada com o meu trabalho ultimamente e por isso também com certa dificuldade de escrever.

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